terça-feira, 10 de março de 2009

Canção da Neofobia Adquirida

Volto para casa, encharcado. Eu poderia morar mais próximo do ponto de ônibus.


Sou recepcionado por Hilda, minha filhote lhasa apso. Vou para a cozinha e encho sua tigela d’água. Ainda há ração no pote. Entro no quarto, abro as janelas e vejo que a chuva lá de fora não tem vento suficiente para entrar no quarto. Deixo-as abertas, então. Vou ao banheiro, tiro as roupas molhadas e troco por outras mais secas e confortáveis.


Ligo o rádio, na esperança de ouvir uma música agradável, surpreendente e que remeta a uma época saudosa. Daquelas que apertam o coração e façam perguntar como foi que passei tanto tempo esquecido dela.


Mas nada disso acontece por vinte minutos.


Procuro pelo café na despensa, só para perceber que o café acabou. Pego um pedaço de papel e anoto o que está faltando, para ir ao mercado assim que a chuva acabar. Volto correndo para o quarto e desligo o rádio. Desisti dele. Mais oito minutos de tolerância, e mesmo assim ele não cooperou com minha demanda de nostalgia.


Percebo que não me agradam os lançamentos de trilha sonora de novela. Presumo que sejam de novela porque não reconheci nenhuma delas em suas versões originais, mas já ouvi uma ou duas em versões mal-cantadas com letras trocadas entoadas pelas meninas do escritório. E há muito não vejo novelas.


Volto para a lista de compras. Café, cebola, farinha... Ainda bem que não havia mais café, porque também está faltando açúcar. Deus sabe da minha tristeza em haver café quente e fresco sem açúcar. Vejo que alguns produtos de limpeza estão para acabar.


Volto para o quarto. A chuva está entrando pela janela, molhando o rádio. Pela decepção que ele me trouxe há pouco, eu deveria deixá-lo molhando. Mas, à medida do possível, eu sou adepto das segundas chances. Fecho as janelas e preservo-o.


Tento lembrar da última vez em tomei banho de chuva deliberadamente, do verbo estava-dentro-de-casa-e-fui-para-a-rua-tomar-banho-de-chuva. Não consegui lembrar de nada mais recente do que dez anos. Acho que não vai dar para ir ao mercado hoje. Deixo a lista num lugar visível, embora ache que eu vou me esquecer dela de qualquer jeito. Sorrio sozinho, pensando em colocar num lugar mais visível ainda um bilhete escrito “Não esqueça da lista de compras!”.


Procuro um disco velho sabendo que é minha única alternativa, dado o fato de que há muito não compro discos novos. Começo a sentir algo que vai se parecer com fome daqui a uns quinze minutos. Tiro a poeira da caixa de um disco velho. Seco o som com uma camiseta largada no chão e ponho o disco para tocar. Percebi que até mesmo o mais recente disco que eu comprei era velho. Jazz dos anos 20 ou rock inglês dos anos 50, não me recordo ao certo.


Enquanto a música ganha toda a casa, procuro algo para comer que não seja de microondas, sob os olhares atentos de Hilda. Geladeira, forno, despensa... Nada. Abro o freezer e tiro uma caixa. Microondas de novo. Lasanha.


Engraçado como as coisas são. Lasanha de microondas evoca-me lembranças saudosas dela. Dos tempos em que saíamos sem um tostão no bolso, sem destino algum, até bater a fome, voltar para casa e esquentar uma lasanha. Mesmo sem nada que aparentemente valesse, eram momentos tão bons que formaram o conjunto das prováveis melhores lembranças da minha vida. Pelo menos, do melhor namoro que tive. Quatro anos após o fim e nenhum relacionamento mostrou bem-sucedido. Os prazerosos não foram longos e os longos não foram prazerosos.


Lembro de um livro meu que ainda está com ela. Vou ter que esperá-la retornar de viagem, tomar coragem e ligar para pedi-lo de volta. Seria legal reler um bom livro.


Desligo o som. Aproveito o fim-de-tarde preguiçoso de chuva, cubro-me com uma manta, sento-me na poltrona com um prato quente de lasanha e ligo a televisão. Novelas vespertinas. Programas de auditório. Séries da moda. Paro de brincar com o controle remoto ao ver um canal de reprises. Abro um involuntário sorriso...


Que é imediatamente desfeito.


Olho para a felpuda cadelinha e digo a ela:


- Hilda, acho que estou ficando igual aos meus discos:


“Velho.”



Carpe Diem. Amo vocês.

Um comentário:

  1. Nossa, me senti tão sem palavras para fazer um comentário.O texto ficou de uma delicadeza fantástica. Parabéns bonito, ficou belo!
    =D
    Pork's

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