segunda-feira, 23 de março de 2009

As verdadeiras mentes perigosas (ou: quando a medicina irresponsável encontra o jornalismo irresponsável)

Hoje, indo para o trabalho, estava a conversar com o meu pai sobre como certas distorções de julgamento podem ser causados para/per o consumidor desatento de informação jornalística. O assunto específico evocado aí foi um acidente aéreo ocorrido no aeroporto japonês de Narita.

Em 35 anos, submetendo-se a 500 voos diários, ocorreu apenas UM acidente: o supracitado. Mas o jornal(ista), ávido por uma manchete de impacto, vai falar sobre o que? A segurança de um aeroporto, com três décadas e um lustro de existência? Ou sobre um acidente em que um aeroplano quica duas vezes no chão, num ato heroico do piloto de salvar vidas, e que não logra sucesso, consumindo-o em chamas e deixando filhos órfãos e esposas viúvas?

Não subestimarei a inteligência do caro leitor revelando qual foco fora escolhido para a matéria.

A equação da distorção é a seguinte: os aviões ainda são o meio de transporte mais seguro do planeta. Sâo tão raros os acidentes envolvendo aviões que, quando ocorre um em qualquer lugar do mundo, todas as mídias de jornal os noticiam. Mas aviões são também transportes em massa. Portanto, temos dois problemas de distorção perceptiva: 1) Quando um avião grande cai, nos lembramos daquele acidente terrível que ocorreu na Finlândia há 3 meses; e 2) Quando um avião grande cai, não morrem 4, 14 ou 40 pessoas. São uma média de 200. Então, viagens de avião são as mais arriscadas, certo?

Errado.

Vejamos as coisas de uma outra perspectiva. Pergunto: por que não temos uma contagem diária de quantas pessoas sofreram acidentes de carro ou moto, com reportagens detalhadas sobre as vítimas, suas famílias e simulações em computação gráfica das tragédias? Respondo: porque, dessa forma, teríamos que reservar uma programação de 24 horas ininterruptas até ser possível noticiar tudo. E a coisa ia acabar banalizando, perdendo seu apelo jornalístico. Mesmo a tragédia tem que ser dosada. Sem falar que a contabilidade das mortes superaria tanto as decorrentes de acidentes aéreos que o público poderia chegar à triste conclusão (triste para as redes de comunicação): pessoas morrem menos quando viajando de avião. E adeus aos especias de-revista-inteira sobre as vítimas do mais novo desastre que chocou o país.

Mas você deve estar se perguntando: o que aviões tem a haver com medicina irresponsável?

Nada.

Eu vim falar sobre crianças psicopatas.



Imbuído desse espírito já no caminho para a agência, vejo uma reportagem da Folha Online intitulada Tendência à psicopatia pode ser detectada, diz médica; leia trecho de livro. Um belo serviço de utilidade pública, até você perceber que trata-se do merchandising do tal livro. Até aí, não há problema algum - Nunca pensei que a Folha de São Paulo fosse uma instituição filantrópica. É preciso se manter no mercado e monetizar o site como for possível, respeitando limites éticos.

O que eu não respeitei foi a atitude/comportamento da Médica Ana Beatriz Barbosa Silva, em tratar a sociopatia infantil de forma tão leviana.

"Como assim, Breno? Você não leu o livro e já está criticando?"

No caminho eu explico.

Meu desrespeito à questão é tão grande que não colarei o conteúdo da matéria aqui. Peço aos senhores que cliquem no link e leiam a supracitada matéria. Não se preocupem: darei todo o tempo que você precisar.

***

Leram? Ótimo. Agora vou falar um pouco sobre as incongruências que encontrei.

A primeira e mais importante: desde o título até o fim da matéria, contem quantas vezes o significante "pode" (incluindo suas variações "podem", "é possível", etc.) surgem no texto.

Eu contei 14.

Como alguém quer vender um produto/serviço com tanta chance de dar errado? A resposta é dada justamente pela articulista:

Vale ressaltar que as características acima são apenas genéricas e que o diagnóstico exato só pode ser firmado por especialistas no assunto. Além do mais, o leitor deve se atentar para a freqüência e a intensidade com as quais estas características se manifestam.

Ou seja: o livro não é suficiente para diagnósticos conclusivos. Portanto, para quê tê-lo? Não vejo nenhum outro motivo diferente de encher os solícitos bolsos da Médica Ana Beatriz, da Editora Fontanar e da Livraria da Folha. Quem sabe, fazendo até um merchandising "espontâneo"? "Cibele me contrariou hoje. Ela nunca fez isso antes. Ela é psicopata. Vou levar na doutora lá do livro."


Outro trecho que me deixou indignado foi:

[...] é muito importante que os pais tenham conhecimento pleno sobre o assunto [psicopatia infantil] e que passem a reconhecer a disfunção em seus filhos, dispensando o devido valor que o problema merece.

Também seria muito importante que eu tivesse conhecimento pleno sobre engenharia de pontes caso eu queira planejar e construir uma ponte. Só que EU NÃO SOU ENGENHEIRO! Não falo aqui que estou encorajando os pais do mundo todo a ser burros p'ra enriquecer os psicólogos/psiquiatras. O que falo é que redigir um "manual" desses e dar a leigos a ilusão de que ler o livro é estar capacitado a diagnósticos precisos.


(Um adendo: antes que vocês tomem "leigo" de um modo depreciativo, lembrem-se de que, para cada coisa que sabemos, há bilhões de coisas para as quais somos leigos. No meu caso, uma delas é engenharia de pontes, por exemplo).

É um perigo dantesco diagnosticar crianças. Estando elas em fase de desenvolvimento de identidade, como pode alguém ser engessado por algo tão fechado como um diagnóstico?

Muitas vezes eles operam numa direção oposta e viram perigosas profecias auto-realizadoras. "Não falei? Eu disse que ele era violento." Ou até gerar permissivades desnecessárias, já que ele possui um transtorno de conduta. "Você não tinha nada que chamá-lo p'ra brincar! Você já não sabia que ele era hiperativo?".

Durante a Graduação, participei de um grupo que deveria ler o DSM-IV-TR, catálogo atualizado de disfunções mentais, num seminário de Psicologia Escolar. Teríamos que dissertar sobre "problemas de aprendizado", e ficamos assustados com a quantidade e tipo de comportamentos catalogados como patológicos. Ao dia da apresentação, dividimos a sala em cinco grupos distintos e entregamos a cada um deles um estudo de caso - Sobre crianças desafiadoras, que realizavam atos de vandalismo, manipulação de coleguinhas, que não sabiam escrever letras manuscritas, etc. - Todas elas se enquadrando em distúrbios específicos. Pedimos aos demais que sugerissem um diagnóstico e intervenções urgentes a cada criança.

E ao final da explanação, revelamos a incômoda verdade: nenhum dos casos era fictício. Todas as crianças apresentadas éramos nós, componentes do grupo, que nunca precisaram ir a psicólogos ou psiquiatras e que agora estavam num curso de Psicologia, obrigados a "curar" outros infantes que chegariam a um consultório pelos mesmos motivos.

Portanto, aí está minha opinião. A leviandade de um profissional da saúde leva consigo a contumácia de um poderoso veículo de comunicação. Não foi a primeira vez e não será a última.

Meu maior medo é que esse jaez de "manual" sirva como arma de manipulação das verdadeiras mentes perigosas: pais sociopatas, mães esquizofrenogênicas, escolas mal-informadas e outras instâncias de poder distorcido (acreditem: não são poucas) que - aí sim - conseguiriam transformar suas crianças, através da força regimental-moderadora da palavra escrita, em projetos sociopatas. A patologia parental, midiática e/ou médica (essas, que não são questionadas, pois não serão eles que irão ao consultório) moldaria a patologia infantil.

Com um lamentável sucesso, diga-se de passagem.


Carpe Noctem. Amo vocês.

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