quinta-feira, 28 de maio de 2009

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Arez.

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Now playing on iTunes: Foo Fighters - Doll
via FoxyTunes


Ela acorda cedo.

Dá um beijo na testa de seu marido que, ainda sonolento, vira a cara e continua a dormir.

Calça as chinelas, que já não possuem as cores de outrora. Passa pelo quarto dos filhos. Estão dormindo como belos anjos de pardas asas.

Ajeita sua camisola, checa se está composta o suficiente e abre a janela da cozinha. O céu de um cinza com tons de azul.

Como de costume, ela levantou-se antes do Sol levantar.

O casebre passa a ser invadido por quentes aromas. A manteiga que crepita na frigideira até encontrar o pão. O café novo que encontra a água. O algodão do uniforme que encontra o ferro de passar roupas.

Ela acorda o filho mais velho com um beijo. Ele vira a cara, geme, grunhe, mas não encontra rendenção. Levanta-se, puxa uma rota toalha e rasteja até o banho.

Aos poucos, a mesa simples ganha cores, sabores e aromas. A garrafa de café ganha aos seus pés pratos com bolachas baratas, ovos, fatias de queijo e mortadela. Milagreira, consegue fazer daquela conjuntura algo sedutor aos sentidos.

Acorda o filho mais novo, que se agarra ao seu pescoço. Ela sorri. puxa uma toalha ao seu ombro e leva o pequenino para o banho. O mais velho havia acabado de escovar os dentes e cede o espaço do banheiro.

Todos estão prontos, sentados à mesa. Nenhuma palavra é proferida, até que o patriarca surge. Carranca, cabelos molhados, porém despenteados.

Senta-se. Desvira um prato. Recolhe um garfo e uma faca do sofrido guardador de plástico. Observa atentamente o que a mesa lhe oferece. Ao seu comando, ela recolhe para ele duas fatias de mortadela, corta um ovo frito pela metade, reune algumas bolachas ao prato. Ela enche a xícara dele com o forte e enevoante café.

Após ter sido o quinhão do alfa devidamente extraído, todos se servem. Todos, menos ela. Após o desjejum, ele veste a parte de cima do uniforme, escova seus cabelos e sai de casa. A tentativa de beijo dela é abreviada pela esquiva dele.

Tange as crianças para fora de casa. Fecha as janelas e a porta de casa. Toma o mais novo pela mão. Estende a mão para o mais velho, que a recusa.

Seguem por um caminho de barro, atravessam uma rua de asfalto e singram pelo bairro nobre que é preciso percorrer para chegar à rua do colégio. Os três ficam silenciosamente maravilhados com todo aquele universo de residências grandes, muros altos, cães de raça, guaritas e automóveis.

Deixa seus pardos anjos na depredada portaria. O mais novo a abraça forte e ela o recompensa com um beijo estalado na testa. Quando ela procura o mais velho, ele já está longe, em franca correria, rumo ao que outrora poderia ser chamada de quadra esportiva. Ela deseja um bom-dia a ambos, pede para que retornem juntos para casa e inicia seu caminho inverso para casa.

Abre a porta. Deixa o sol entrar por todas as janelas. Belisca o que restou do café e do pão com manteiga. Nenhum dos dois está fumegando como antes. Muito do sabor que havia pela manhã se perdeu.

Junta os restos e põe num prato. Guarda tudo numa velha geladeira azul. Joga o resto do frio café pelo ralo, lava toda a louça do café da manhã. Liga o rádio à pilha e, entre um chiado e outro, capta a beleza das músicas que dissertam sobre juras de amor eterno, apaixonados que não se esquecem nunca do outro. Canta todas as letras à sua maneira. Suspira à voz do locutor, fiel companheiro de todas as manhãs. Mas ainda encontra tempo para lamentar as letras tristes a falar de traição, distância e relações que se perderam.

Hoje é sexta-feira, mas há muito isso já não faz diferença alguma.

Após lavar a louça do café, é hora de pensar no almoço. Põe um pedaço de carne congelada em cima da pia. Ela avalia que terá de preparar um pouco mais de arroz. O feijão precisa ser apenas requentado, já que o marido não virá comer hoje. Esquenta água, corta, tempera, corta, descongela, salga... A vizinha aparece para pedir uma cebola emprestada. Do lado de fora, cantarola um trecho da música que toca na rádio. Agradece pela cebola e passa cerca de quinze minutos a queixar-se de comportamentos do marido. Ouvindo atentamente cada palavra, ela tenta, baseada em seus tantos anos atada ao matrimônio, aconselhar a vizinha. Ela agradece e retorna à sua casa.

Ela aproveita o sol inclemente para bater algumas roupas no tanque, pô-las de molho e estendê-las no varal do quintal.

Entre panelas, jarra de suco e frigideira, o almoço está pronto. Ela reduz o volume do rádio e recosta-se sobre o sofá reencapado.

Assim que os seus olhos se fecham, ouve o belo e ensurdecedor som de seus filhos, suados, sujos de barro e famintos. Após muito arguir, eles se convencem a tomar um breve banho, para então abocanhar a deliciosa refeição feito dois pequenos bárbaros.

Após o almoço, o filho mais velho corre com seus amigos em direção ao campo de futebol, o que prometia mais uma parelha de roupas sujas de barro ao cair da tarde. O filho mais novo fora convidado por outro garoto da rua para assistir a desenhos animados.

Enquanto isso, ela retira as roupas do varal. Arma a tábua e liga o ferro na tomada. Passa. Dobra. Passa. Dobra. Passa. Dobra. Guarda.

Retira as sobras do café da manhã de dentro da geladeira. Frita mais dois ovos. Assa mais pães. Prepara outra garrafa de café.

O céu escurece. Ela preocupa-se com os horários de seus filhos. Vai atrás do mais novo que, após um ensaio de choro, concorda em retornar para casa. Poucos minutos depois, o mais velho surge, com o já esperado barro encruando até a alma. Novos apelos negados - Era hora de mais um banho.

Jantar à mesa. Ela espera a chegada do marido, que tarda. Ela passa algumas horas com a cabeça para fora da janela, enquanto as luzes dos postes improvisados se acendiam e a comida esfriava.

Compadecida pelas crianças, ela as autoriza a jantar. Eles devoram a refeição calados.

O filho mais velho brinca um pouco na rua e retorna relativamente cedo. Reclama estar cansado e corre para o quarto.

Ela permanecia vigilante na sala. O filho mais novo tenta acompanhá-la na vigília. Ele ainda não chegou.

Chega a madrugada.


Ela liga o rádio, deixando o volume baixo como estava. Uma sequência de canções românticas a enternece, bem como a voz do seu tão-fiel locutor.

O filho mais novo dorme no sofá, num sono tão gostoso que à ela dá pena retirá-lo dali. As horas passam.

Ela ainda está alerta. Agoniada. Pensando em todos os maus motivos para explicar o seu atraso.

Ela toma coragem e abre a janela. Involuntariamente, vê os tórridos vultos desenhados na clara cortina da casa de sua vizinha. Ela fica feliz pelo casal ter resolvido o litígio de hoje de manhã. Pensa como é normal brigar ao início de um casamento. E é tomada de assalto pela recordação dela e de seu marido nesse mesmo período. E das juras de amor feitas outrora pelo casal. Iguaizinhas àquelas que rivalizavam com os chiados emitidos pelo rádio.

Dá graças ao seu deus quando vê que a sombra que percorre a escuridão da sua rua vai tomando formas e cores até revelar que é o seu marido. Ela fecha a janela. Aumenta só um pouco o volume do rádio. Algo na música que tocava aliado à visão de desavisada voyeur do casal de amantes evocou algo nela que não sentia há tempos.

Ela sorri.

Ele abre a porta, de modo desajeitado. Despenteado. Uma miríade de odores distintos que não haviam saído com ele daquela casa. Um botão da sua camisa está arrancado.

Enquanto ela celebrava o seu retorno, ele simplesmente gritava. Vociferações destituídas de sentido. Queixou-se do fato dela ainda estar acordada. E, ironicamente, quanto mais alto ele esbravejava, mais doce era o tom de voz dela.

O filho mais novo abriu os olhos, mas permaneceu encolhido em seu recosto. Grunhia. Gemia. Até não conseguir evitar o choro, ao ver sua genitora ser esmurrada pelo próprio pai. Um choro que tornou-se, subitamente, um agudo urro primal.

Ele a esbofeteava sem dó. Berrava com todo o seu ser. Ela apanhava calada. O róseo da pele ganhava o escarlate. O escarlate deu lugar ao púrpura. Seu corpo ganhou o chão. O filho mais velho estava escondido, à espreita. Num lance de segundos, correu em direção à sala, resgatou seu irmão e correu para o quarto.

Após saciar seus instintos brutais, em meio a resmungos, ele jogava suas roupas pela casa até desabar na rangente cama de casal.

Após recuperar-se, ela corre para o espelho do banheiro. Soluça. Tampa a boca com a mão.

Dirige-se ao corredor, em busca de concluir o que intencionava fazer desde a hora em que ela o viu. Um pensamento que não a largou mesmo em meio à surra, o choro do seu filho mais novo e aflição de seu filho mais velho:

Pregar um novo botão à camisa do marido.

Apanhou linha, agulha e um botão novo. Acendeu a luz da cozinha e sentou-se à mesa. Ao lado, o seu rádio. Após uma terna canção sobre amores eternos, o locutor, como se falasse diretamente a ela, profere um lúgubre discurso sobre as paixões e avisa que aquele será o último bloco de músicas da programação.

A agulha acidentalmente perfura seu dedo. Um pequeno fio de sangue se envereda às curvas de sua impressão digital. E como se isso pudesse autorizá-la a fazê-lo, ela chora. Copiosa. Afluente.

E ela se abraça à camisa encharcada de aguardente, colônias femininas e cigarro. E chora. E se pergunta do porquê disso acontecer.

Seu fiel locutor se despede. Os chiados, enfim, vencem a contenda e imperam sobre o aparelho. Ela desliga o rádio. Dobra a camisa do uniforme sobre a mesa de centro da sala.

Chega ao quarto. Estuda o que sobrou de espaço na cama e tenta preenchê-lo, soturna como uma felina, para não perturbar o marido. E dorme.

Triste fim o da mulher perfeita. Lava, passa, cozinha, ama, apanha...

E ainda tem que acordar cedo.


Carpe Noctem. Amo vocês.

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