quarta-feira, 19 de março de 2008

M.I.A.


Era uma vez, um cara. Um cara tão comum que talvez você nem conheça um desses.

Certa feita, esse cara saiu de casa, por um motivo. Um motivo tão comum que nem valeria a pena citar.

Esse cara comum, com um motivo comum p’ra sair de casa, levou consigo suas chaves e seu relógio.

Dizem as más línguas que as chaves possuem, por principal atributo, a capacidade de abrir – Até mesmo fechar! – Portas. E o relógio, conhecimento obscuro adquirido com um monge tibetano que conheci num beco de Londres, possui uma utilidade secreta: revelar as atuais horas àqueles que não possuíam (e até mesmo a algumas que já a possuíam, mas que têm seu ego engrandecido quando as confirmam pelo aparato).

Iluminado pela incomum ciência da utilidade de sua chave e seu relógio, nosso comum cara seguiu pelo caminho previamente estabelecido (em uma vida passada, ouvi da própria Morgana LeFay que pessoas comuns nutrem o hábito de estabelecerem previamente seus caminhos para, só após a confecção de tal ritual, o realizarem de fato). Uma perna após a outra. Ãngulos de curva executados perfeitamente. Esquivava-se de quaisquer obstáculos que apareciam em seu caminho: degraus, postes, placas... mesmo as outras pessoas, que não estavam em seu previamente estabelecido caminho, não se tornavam empecilho. Nunca.

Até que ocorreu o fato.

Alguns historiadores dissertam que haveria sido uma direita ao invés de uma esquerda que ele deveria ter contornado. Três ensaístas tiveram a coragem de dizer, na minha cara, que não foi direita nem esquerda – Ele teria seguido em frente, tornando o fato ainda mais espetacular. A tia de um homem que eu não conheço hipotetizou que havia sido uma inefável obra divina. E um jogador de críquete, famoso expert que sempre é consultado pela imprensa quando esse jaez de fenômeno ocorre, trouxe à tona o célebre postulado da Legítima Acídia – Aquele que disserta sobre as probabilidades de um ato qualquer ocorrer por mero desleixo.

O que importa é que o fato ocorreu.

Um cara tão comum, com um motivo tão comum, viu-se perdido. De súbito, não havia mais rosto, rua, árvore, passarinho ou camiseta de time de handebol que lhe fizesse sentido. E, para agravar o quadro, quanto mais ele andava, menos elementos faziam parte do cenário. Sua visão, tão ilimitada quanto possível para um cara comum, conseguia atentá-lo apenas para quilômetros e quilômetros de areia a sua volta, com esparsos arbustos localizados lá e cá e algumas aves, extraordinariamente irreconhecíveis por conta da altura com a qual singravam os céus.

Ele continuou andando, andando e andando. Desacostumado à falta de obstáculos previamente computados (pois, de fato, não havia obstáculo algum). Uma liberdade de movimentos à qual nenhum cara comum se sentiria confortável. Ansioso por algum tipo de orientação ele olha para o seu braço esquerdo (de acordo com os personal stylists de descendência fenícia, caras comuns usam relógio no braço esquerdo)...

...E percebe que não há mais relógio algum.

Ele se sente extremamente perdido. Pessoas comuns sentem-se perdidas assim quando uma situação dessas ocorre, disse-me o Oráculo de Massachusetts. Perdido a ponto de procurar retomar um eixo lógico que o leve de volta até o momento em que não havia problema algum (Pessoas comuns recorrem a esse subterfúgio. Isso é dedução minha).

Resolveu assumir uma tática baseada na recapitulação dos seus passos antigos a fim de retornar por eles. Muito perspicaz, embora não seja propriedade apenas de pessoas comuns chegarem a tal conclusão. De qualquer forma, começou a seguir suas antigas pegadas, em direção à sua posição anterior.

Caminhou por horas Ao menos ele achava que haviam sido horas. Como estava sem relógio, não podia precisar o tempo transcorrido. Até que não encontrou nada do que procurava: nem seu relógio nem o caminho de volta.

E, numa atitude incomum para caras comuns, nosso amigo senta-se na areia. Olha para os lados. Percebe que seu corpo relaxa a partir do momento em que o relógio deixa de ser o seu maior problema (Em tempo – Os relógios nunca são o problema. As coisas complicam quando se é esclarecido da sua utilidade secreta).

Ele passa a se aperceber das sensações mais estranhas. O impacto do vento em seu corpo. O som dos pássaros. O farfalhar das folhas dos arbustos. Olhou para a sua mão e percebeu que ela estava cheia de areia. Começou a brincar com ela: a deixava cair no chão, a recolhia novamente e reiniciava o processo.

E quando menos esperava, encontrou seu relógio perdido. Sua estrutura arranhada. Seu visor intacto. Os ponteiros ainda funcionando perfeitamente.

Foi aí que ele uniu a argola de suas chaves à pulseira de seu relógio, de forma que eles não mais se separassem.

Fechou bem a sua mão direita.

Girou seu braço.

Os arremessou bem longe.

E correu à direção contrária.

Não sentindo mais a necessidade de voltar para lugar algum, ou situar-se em tempo algum.

Ciente disso e olha p’ra trás... para continuar a correr. E pensa:

“Tanto melhor.”


Carpe Diem. Amo vocês.

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